Crise. Uma situação em que perigo e oportunidade se encontram. Nas últimas semanas, ouvimos e aprendemos muito sobre os perigos da Covid-19 e o sofrimento que ela causa. Mas existem também oportunidades. Este desafio brutal aos nossos sistemas existentes pode abrir novas janelas de oportunidade para mudanças há muito aguardadas.
Elencamos 16 mudanças positivas na mentalidade coletiva que essa era de emergência poderá provocar.
1. Autossuficiência – De dietas baseadas em plantas a impressoras 3D de mesa, a situação atual fará com que muitos vejam os benefícios de poder contar com alimentos e bens de origem local – em vez de produtos que exigem cadeias de suprimentos extensas e longínquas. A produção local tem sido defendida por muitos da perspectiva da sustentabilidade, mas esse tipo de autossuficiência, em última análise, é uma questão de poder – de como a independência nos coloca em uma posição em que, ao invés de apenas cruzarmos os dedos e torcermos para que líderes governamentais façam um bom trabalho de nos proteger, nós possamos preservar certa influência sobre nosso próprio destino e das pessoas que amamos.
2. Painéis solares – Até o momento, nenhuma região ficou sem eletricidade devido às consequências sistêmicas dessa pandemia. Contudo, seria ingênuo supor que isso não acontecerá em alguns lugares. O grande benefício dos sistemas descentralizados, em termos bem simples, é o fato de não terem pontos centrais de falha. Os painéis solares têm sido retratados como uma maneira de fazer a coisa certa pelo planeta, os novos tempos da Covid revelarão o quanto eles também podem ser uma questão de instrumentalização pessoal.
3. A tecnologia dos drones – Os drones de entrega e os robôs desinfetantes não são mais que o começo de uma extraordinária transformação. Já existem exemplos de ONGs que utilizam drones para transportar medicamentos para locais remotos com precisão impressionante. E, agora que a capacidade de transportar e entregar mercadorias sem contato humano tornou-se uma proposta de valor mais atraente do que nunca, a adoção generalizada da tecnologia dos drones poderá ser alavancada um imenso aumento na demanda.
4. Renda básica universal (RBU) – Martin Luther King, Bertrand Russell, Milton Friedman e muitos outros concordavam que uma sociedade civilizada deve garantir que seus cidadãos tenham dinheiro suficiente para suas necessidades básicas e que ninguém deve viver em estado de desespero.
Durante o confinamento atual, muitos empregos desaparecerão da noite para o dia, como já vem acontecendo. As perdas nos mercados de ações refletem a preocupação com as possíveis dimensões da retração no consumo. Em vista disso, Hong Kong já aprovou uma espécie de RBU emergencial que dá a cada cidadão 10.000 dólares de Hong Kong (cerca de US$ 1.290). Propostas para assegurar uma transferência mensal de renda a todos os cidadãos enquanto durar a pandemia têm sido apoiadas por liberais e conservadores em muitos outros países. As lições desses experimentos e de outros já em andamento aumentarão consideravelmente nosso conhecimento econômico e social.
5. Nunca confiarmos cegamente em um líder – Os cidadãos do mundo hoje estão assistindo de camarote como os líderes de todo o globo estão lidando com a mesmíssima doença. Depois que a poeira baixar e os números puderem ser estudados, veremos o que funcionou e o que não funcionou. Mas, mais que isso, teremos um exemplo excepcional de quão arbitrárias podem ser as escolhas que os líderes fazem.
Pessoas já morreram porque este ou aquele líder adotou a abordagem errada na hora errada. Isso não significa que os cidadãos não confiam mais em ninguém; significa, sim, que devemos exigir mais de um mandato político já que conferimos autoridade aos líderes também em questões no âmbito da ciência.
6. Aprender e amar fazer o mínimo – Do que de fato nós precisamos? “How to do nothing: resisting the attention economy” [Como não fazer nada: resistindo à economia da atenção] (2019), de Jenny Odell, provocou muita discussão no ano passado. O livro questiona quantas das atividades que realizamos todos os dias efetivamente nos beneficiam. Fazer menos tem suas vantagens para o clima e para o meio ambiente como um todo, e também para nossos níveis de estresse e paz de espírito.
A Covid-19, ao menos por um tempo, provocará uma redução extrema da produtividade. Com isso, teremos uma nova linha de base com a qual comparar nossa vida “normal”. Ao nos vermos forçados a parar por um tempo, do que será que efetivamente sentiremos falta? E do que não teremos saudade? Apertar o pause nos dará a oportunidade de fazer um balanço geral do que de fato merece a glória em nossa glorificação de todas as coisas que empreendemos.
7. Adoção mais generalizada de protocolos descentralizados na internet – Uma quarentena pode ser a realização dos sonhos dos introvertidos – até que a internet pare de funcionar. Felizmente, é improvável que isso aconteça. Entretanto, se estivéssemos executando protocolos descentralizados, teríamos certeza de que a internet não pararia. A internet foi construída para ser resiliente em tempos de crise. Com o tempo, porém, um pequeno número de empresas foi assumindo controle de um grande número dos servidores que direcionam o tráfego. Isso contraria e prejudica o grande trunfo do desenho da internet, a descentralização.
Inconcebivelmente, somente a Amazon Web Services, por exemplo, controla um terço dos servidores que atuam na nuvem. O Sistema Interplanetário de Arquivos (IPFS, Interplanetary File System) é um novo protocolo que poderíamos adotar para que a internet voltasse a ser peer-to-peer (ponto a ponto) novamente, garantindo que estivesse mais bem equipada para momentos de crise.
8. Um mundo pós-pós-verdade – E assim, num piscar de olhos, a precisão tornou-se fundamental. Quando deparamos uma variedade de cenários possíveis, desde os mais brandos ao francamente catastrófico, todos nós, coletivamente, sentimos a mesma coisa: queremos conhecer os fatos. Até que ponto devemos temer um espirro? Um aperto de mão? Será que tudo está sob controle ou deveríamos estocar comida e água em casa? Queremos saber. Precisamos saber. Não adivinhar, não conjecturar, não ter um palpite – saber. E mesmo que a ciência tivesse sendo cada vez mais questionada e colocada em xeque nos últimos anos, não vemos hoje muitas pessoas rejeitando a ideia de uma vacina.
9. A hora e a vez da telepresença – Felizmente, o distanciamento social está acontecendo em uma época em que já gostávamos de socializar bem distantes uns dos outros. Todas aquelas reuniões para resolver coisas que poderiam muito bem ser resolvidas por e-mail se transformaram finalmente em e-mails. Para todas as outras, temos hoje telepresença, videoconferência e até avatares digitais e palcos virtuais. Quanto mais durar a quarentena, mais as tecnologias que nos aproximam em alta definição dos colegas e pessoas que amamos serão vistas como a melhor invenção desde a lâmpada elétrica. O fato de cada vez mais existirem versões digitais de congressos, conferências e espetáculos é uma ótima notícia para um mundo muito mais dependente de viagens aéreas do que as taxas de carbono deveriam permitir. No que diz respeito à aviação, graças à disseminação de serviços de telepresença, o que é hoje um estado de emergência poderá vir a ser uma espécie de nova normalidade após o vírus.
10. Pico de bebês pós-corona – Apagões e grandes nevascas resultam na irrupção de bebês nove meses depois: isso pode ser facilmente observado. Será por que, quando se está preso em casa, o sexo é a melhor opção? Ou será por que, em tempos de desespero, a ideia de trazer uma nova vida ao mundo nos ajuda a enfrentar a sensação de destruição iminente? Seja o que for, é inquestionável que quarentenas instigam certos prazeres sensuais. Quem achar que este não é o momento adequado para conceber a próxima geração deve pensar em estocar contraceptivos enquanto (ou se) puder. Nomes sugeridos para os membros da geração vindoura: Quarentinos ou Coronescentes.
11. Remunerar os verdadeiros heróis com mais do que apenas aplausos – Estamos sentindo na pele o verdadeiro valor dos trabalhos que mantêm a sociedade – e nossa sanidade. Pessoas que tiveram de passar a educar seus filhos em casa têm expressado uma nova apreciação pelo dia a dia dos professores. Coletores de lixo e entregadores estão recebendo agradecimentos adequados por serviços que quase nunca eram reconhecidos. E os prestadores de serviços de saúde que arriscam a própria saúde em prol dos outros estão agora recebendo certa dose gratidão. Estamos aprendendo o que é essencial. E em vez de remunerarmos os heróis desta crise apenas com aplausos, será que desta vez nossa apreciação repentina não poderia assumir uma forma monetária e traduzir-se em melhores salários para as profissões mais cruciais?
12. Todos os grandes livros, filmes, piadas e memes que surgirão – E assim, inesperadamente, você teve tempo para terminar seu romance. O mesmo vale para uma infinidade de artistas, todos eles hoje em confinamento, muitos dos quais estão possivelmente criando suas obras mais inspiradas. Sabemos que Shakespeare escreveu “Rei Lear” durante um período em quarentena. Para as especulações existenciais de cineastas sérios ao hedonismo escapista e aos memes mais geniais, uma pandemia, a despeito (ou por causa) de sua brutalidade, pode ser uma musa e tanto.
13. Protocolos de emergência aprimorados – Por pior que seja a Covid-19, nós que pertencemos à comunidade global que estuda riscos catastróficos sabemos que existem cenários muito piores e que podemos fazer muito mais para melhorar nossa vida e reduzir as ameaças. Livros como “Feeding everyone no matter what: managing food security after global catastrophe” [Alimentar a todos, não importa como: garantindo segurança alimentar após uma catástrofe global] (2014), de David Denkenberger, nunca receberam a atenção que mereciam.
Poderíamos aproveitar nossa situação atual para mudar isso, tornando-nos mais sábios e mais resilientes em face de problemas muito mais vastos. Propostas como as de Denkenberger – por exemplo, criar fazendas e armazéns subterrâneos de cogumelos, ou mesmo alimentos à base de bactérias que sobrevivam a um possível inverno nuclear ou supererupção vulcânica – não parecem mais tão excêntricas quanto antes. Pelo contrário, parecem sábias e ponderadas, à medida que a expressão “esperar pelo melhor, planejar para o pior” começa a ressoar com mais força em toda parte.
14. Longevidade reimaginada – A situação e sofrimento dos idosos raramente são mencionados em épocas normais. Antes da atual pandemia, 100 mil pessoas morriam de doenças provocadas diretamente pelo envelhecimento do corpo – todos os dias. Como a Covid-19 está castigando desproporcionalmente a parte mais idosa da população e os médicos estão precisando tomar decisões de vida ou morte com base na idade dos pacientes, esse problema certamente será levado em conta com mais seriedade. A solidariedade entre gerações poderá se tornar mais importante se todos nós tivermos consciência plena de que um corpo saudável é sempre temporário. A extensão da saúde – e da vida saudável – é um problema ao qual poderíamos aplicar mais seriamente nosso talento coletivo, à medida que vamos entendendo melhor o argumento apresentado por profissionais da área de que o envelhecimento deveria ser classificado como uma doença.
15. Um melhor entendimento do que a crença coletiva é capaz – Especialmente no que diz respeito ao endividamento. O Federal Reserve está oferecendo US$ 1,5 trilhão em empréstimos de curto prazo (e muito mais está a caminho) para estabilizar os mercados abalados pela Covid-19. Em um mundo onde as moedas fiduciárias são lastreadas apenas pela crença das pessoas, muito pode ser feito se houver apoio suficiente. Em termos de comparação, o valor total dos empréstimos para estudantes universitários nos Estados Unidos chega a US$ 1,6 trilhão.
Se você quiser aproveitar sua temporada de confinamento para estudar um conceito interessante, pesquise “jubileu de dívidas”. Ou, se estiver procurando uma leitura mais longa, veja “Debt: the first 5,000 years” [Endividamento: os primeiros 5 mil anos] (2011), de David Graeber. Muito tempo em casa significa muito tempo para aprender e se organizar para mudar, com pessoas que compartilham suas convicções e que poderiam ampliá-las. Isso vale tanto para dívidas como para qualquer outro assunto.
16. Um inimigo em comum – Nos anos 1990, alguns pensadores que refletiam sobre a globalização argumentaram que nossa aldeia global compartilhada estava se transformando em um “McMundo” que tinha uma cultura de consumo como denominador comum. Por outro lado, é indiscutível que todos os seres humanos têm algo muito mais saudável em comum: todos nós queremos um futuro seguro. Na Covid-19, encontramos um inimigo comum a todos, que ataca pessoas independentemente de sua aparência ou passaporte.
E isso nos leva de volta ao significado original de “crise”: a situação atual é um momento de decisão e nos oferece uma escolha. Ou tentamos reconstituir o mundo tal como era antes dessa ocorrência catastrófica ou aproveitamos esse acontecimento como o momento fundador de uma narrativa global unificadora – uma narrativa que reconheça que, a despeito de nossas múltiplas diferenças e da variedade de grupos a que pertencemos, somos todos corpos vulneráveis extremamente dependentes uns dos outros e de sistemas de governança.
É verdade que já estamos conscientes de nossa interconectividade global há algum tempo – uma em cada duas palestras TED faz referência a isso – mas nunca sentimos tanto isso na pele quanto agora. Já testemunhamos a falta de coordenação global para controlar a propagação do vírus desde o início. Agora vemos como o governo de cada Estado está transformando um evento global em um sem-número de experiências singulares e peculiares a cada nação.
Tais reações contam a história de um mundo que já se interconectou mas ainda mantém um modelo de governança que finge não ver nossa interconexão. Isso pode mudar. Isso tem de mudar. Podemos criar outra narrativa, uma narrativa que exige que riscos globais recebam uma resposta global e que proclame que certas questões são tão importantes que estão acima de todo e qualquer sectarismo político. Um vírus pode se disseminar rapidamente e nos transformar profundamente. Uma ideia pode fazer o mesmo. Confinados, sozinhos em nossas casas, nunca houve um momento melhor para juntarmos forças.
Carin Ism é cofundadora da Agência do Futuro da Governança (FOGA, Future of Governance Agency) e coautora de “How to rule a world: a guide to the established and emerging tools for power and governance in the 21st century” [Como governar um mundo: um guia das ferramentas existentes e emergentes de poder e governança no século 21], a ser lançado este ano. Ela é professora da SingularityU Nordic e leciona Tecnologia de Registro Distribuído [DLT, distributed ledger technology] e Futuro da Governança.
Julien Leyre é escritor, educador e inovador em governança franco-australiano. É coautor, com Carin Ism, do próximo livro “How to rule a world: a guide to the established and emerging tools for power and governance in the 21st century” e cofundador da FOGA. Leyre é também diretor de operações da reVolt, empresa australiana de energia, onde desenvolve novos modelos de negócios para acelerar uma transição em larga escala para a energia
Texto traduzido e adaptado do Singularity Hub