Use um supercomputador a cada segundo de cada dia e, eventualmente, seu armazenamento será preenchido, sua velocidade diminuirá e seus componentes queimarão.
Mesmo assim nossos cérebros funcionam com uma eficácia surpreendente em quase todos os momentos de nossas vidas. Por 40 anos, os cientistas se perguntam como os delicados componentes biológicos, anexados em uma pilha aparentemente caótica, podem manter o armazenamento contínuo de informações por décadas. Mesmo quando neurônios individuais morrem, nossas redes neurais se reajustam, refinando suas conexões para sustentar a transmissão de dados ideal. Diferentemente de um jogo de telefone com mensagens que se deterioram cada vez mais, de algum modo nossos neurônios se auto-agrupam em um estado “mágico”, onde eles podem renovar quase todos os componentes individuais de sua composição proteica interior, mas ainda assim mantendo as memórias armazenadas.
Recentemente, uma equipe da Universidade de Washington, em St. Louis, combinou gravações neurais de ratos com a modelagem computacional para desvendar um dos maiores mistérios do cérebro: por que, mesmo com componentes barulhentos, ele é tão poderoso? Ao analisar os padrões de disparo de centenas de neurônios ao longo de dias, a equipe encontrou evidências que sustentam um tipo de “regime computacional” que pode estar por trás de todos os pensamentos e comportamentos que surgem naturalmente de faíscas elétricas no cérebro – incluindo a consciência.
A resposta, por acaso, origina-se de uma ideia confusa e controversa da física teórica: a criticidade. Pela primeira vez, a equipe observou um “puxão” abstrato que atrai as redes neurais de volta a um estado funcional ideal, para que nunca se afastem de seus dedicados “pontos de ajuste”, determinados pela evolução. Ainda mais impressionante? Essa força atraente de alguma forma surge de um universo oculto de leis físicas enterradas na arquitetura de redes neurais inteiras, sem nenhum neurônio ditando seu curso.
“É uma idéia elegante que o cérebro possa sintonizar uma propriedade emergente a um ponto perfeitamente previsto pelos físicos”, disse Dr. Keith Hengen, autor principal do estudo
Ponto de atração
O “ponto de atração” é uma maneira matemática de descrever o equilíbrio das forças naturais (como a música de Guerra nas Estrelas). Um exemplo fácil de imaginar é uma mola em formato espiral, como as que estão dentro dos colchões: você pode esticá-las ou esmagá-las ao longo dos anos, mas elas geralmente voltam ao estado inicial.
Esse estado inicial é um atrator. Um princípio semelhante, embora muito mais abstrato, orienta a atividade neural, especialmente os principais fatores de comunicação do cérebro: neurônios inibitórios e excitatórios. Pense neles como o yin e yang da atividade elétrica no cérebro. Ambos enviam “picos” de eletricidade a seus vizinhos, com os neurônios inibitórios enfraquecendo a transmissão, e os excitatórios, amplificando a mensagem. Quanto mais sinais chegam, mais picos eles emitem – algo chamado de “taxa de disparo”, como a música de batidas por minuto da atividade cerebral.
Ainda assim, até os neurônios individuais têm um nível limitado de ativação. Normalmente, eles nunca podem disparar tanto que isso atrapalhe suas estruturas físicas. Em outras palavras, os neurônios são autolimitados. Em uma escala mais ampla, as redes neurais também possuem um sintonizador “grã-fino” global que funciona na maioria das sinapses: estruturas em forma de cogumelo que se projetam dos ramos neurais, onde os neurônios se comunicam.
Se a rede ficar muito excitada, o sintonizador se reduzirá a sinais de transmissão “silenciosos” antes que o cérebro se ative em um estado de caos – vendo coisas que não existem, como na esquizofrenia. Mas essa redução também impede que as redes neurais se tornem apáticas, como pode acontecer em outros distúrbios neurológicos, incluindo demência.
“Quando os neurônios se combinam, eles buscam ativamente um regime crítico”, explicou Hegen. De alguma forma,os grupos de neurônios interligados alcançam um estado de atividade bem na fronteira do caos e da quietude, garantindo que eles idealmente tenham alto nível de armazenamento e processamento de informações – sem cair em uma avalanche de atividades e subsequente exaustão.
Olhos bem fechados
A compreensão de como o cérebro atinge a criticidade é enorme, não apenas para preservar as habilidades do cérebro com a chegada da idade e de doenças, mas também para construir melhores máquinas que imitam o cérebro. Até agora, segundo a equipe, o trabalho sobre criticidade tem sido teórico; nós queríamos identificar sinais reais no cérebro.
A equipe de Hegen aproveitou os eletrodos modernos de alta densidade, que podem gravar a partir de centenas de neurônios por um período de dias. Eles deram início com duas perguntas: 1) o córtex – a região mais externa do cérebro envolvida em funções cognitivas superiores – consegue manter a atividade cerebral em um ponto crítico? 2) isso acontece por causa dos neurônios individuais, que tendem a restringir seus próprios níveis de atividade?
Aí vem a parte divertida: ratos com tapa-olho de pirata. O bloqueio da entrada de sinais luminosos em um olho causa uma reorganização gigantesca da atividade neural ao longo do tempo, e a equipe monitorou essas alterações durante uma semana. Primeiro, em ratos correndo ao redor de suas gaiolas com eletrodos implantados, a equipe registrou sua atividade neural enquanto os animais tinham os dois olhos abertos. Usando um método matemático para analisar os dados em “avalanches neuronais” – cascatas de picos elétricos que permanecem relativamente locais em uma rede – a equipe descobriu que o córtex visual ondulava à beira da criticidade, independentemente se era em plena luz do dia ou à noite. Pergunta um, resolvida.
Em seguida, a equipe tapou um único olho em seus ratos. Depois de pouco mais de um dia, os neurônios que carregam informações do olho de pirata ficaram quietos. No entanto, no quinto dia, os neurônios se recuperaram, de volta à ativa para seu padrão “atrator” – exatamente o que a equipe previu.
No entanto, surpreendentemente a criticidade da rede não seguiu uma linha do tempo semelhante. Quase imediatamente após bloquear os olhos, os cientistas viram uma mudança maciça em seu estado de rede longe da criticidade – isto é, longe da computação ideal.
“Parece que, assim que há uma incompatibilidade entre o que o animal espera e o que está passando por esse olho, a dinâmica computacional se desfaz”, disse Hengen.
Em dois dias, sobretudo, a rede retrocedeu a um estado de quase criticidade, muito antes dos neurônios individuais recuperarem seus níveis de atividade. Ou seja, a computação máxima no cérebro não ocorre porque os componentes individuais dos neurônios também estão trabalhando no máximo; pelo contrário, mesmo com componentes imperfeitos, as redes neurais convergem naturalmente para a criticidade ou para soluções ideais.
Venha à tona
Fenômenos emergentes, como pensamento e consciência complexos, são frequentemente conduzidos a discussões filosóficas. Será que nossas mentes são mais do que somente um disparo elétrico? Existe alguma propriedade abstrata e especial, como o “qualia” (termo usado na filosofia que define as qualidades subjetivas das experiências mentais conscientes), que se origina de leis físicas mensuráveis?
Em vez de recorrer a teorias sem argumentos, a equipe seguiu o segundo caminho: eles foram atrás das bases biológicas da criticidade. Usando métodos computacionais, eles experimentaram vários modelos diferentes do córtex visual, brincando com vários parâmetros até encontrar um modelo que se comportasse da mesma maneira que seus ratos de um olho só.
Exploramos mais de 400 combinações de parâmetros diferentes, segundo a equipe, e menos de 0,5% dos modelos corresponderam à nossa observação. Os modelos bem-sucedidos tinham uma coisa em comum: todos apontavam para conexões inibitórias como o ponto crucial para alcançar a criticidade.
Em outras palavras, o cálculo ideal no cérebro não se deve ao pó mágico das fadas; a arquitetura das conexões inibitórias é uma raiz fundamental sobre a qual princípios físicos abstratos e complexos, como a criticidade, podem crescer e orientar a função cerebral.
Essas são notícias extremamente boas para o aprendizado profundo e outros modelos de IA. Atualmente, a maioria utiliza poucas conexões inibitórias, e o estudo aponta imediatamente para uma maneira de avançar em direção à criticidade em redes neurais artificiais. Armazenamento maior e melhor transmissão de dados – quem não quer isso? Indo ainda mais longe, para alguns, a criticidade pode até representar uma maneira de definir a consciência em nossos cérebros e potencialmente em máquinas, embora a idéia seja controversa.
Ainda mais em breve, a equipe acredita que a criticidade pode ser usada para examinar redes neurais em distúrbios neurológicos. A auto-regulação debilitada pode resultar em Alzheimer, epilepsia, autismo e esquizofrenia, disse Hengen. Os cientistas sabem há muito tempo que muitos de nossos distúrbios cerebrais mais preocupantes se devem a desequilíbrios na rede, mas é difícil identificar uma causa exata e mensurável. Graças à criticidade, podemos finalmente ter uma maneira de dar uma espiada no mundo oculto das leis físicas em nossos cérebros – e ajustá-las à saúde.
“Intuitivamente, faz sentido que a evolução tenha selecionado os pequenos fragmentos que dão origem a uma solução ideal [na computação do cérebro]. Mas o tempo dirá. Há muito trabalho a ser feito “, disse Hengen.
Texto traduzido e adaptado do Singularity Hub