Estamos no meio de uma emergência de saúde pública e a vida como a conhecíamos deixou de existir. Os lugares onde costumávamos ir estão fechados, os eventos pelos quais esperávamos foram cancelados e alguns de nós já perdemos o emprego ou tememos perdê-lo em breve.
Mas a crise também tem aspectos positivos e, ainda que traga à tona o que algumas pessoas têm de pior (estou falando com vocês, acumuladores de papel higiênico), também tem revelado o que há de melhor em muitas outras. Italianos confinados cantando juntos, um empresário que criou um respirador que qualquer pessoa pode fabricar e postou no YouTube, voluntários que fabricaram válvulas médicas em impressoras 3D para tratamento do vírus por muito menos que o custo habitual.
Se escolhermos sentir que ainda há esperança para a humanidade ao invés de achar que nossa espécie está prestes a sucumbir a um destino terrível, basta olharmos para estes exemplos – e tenho certeza de que há muitos outros por aí. Há muita esperança e muitas oportunidades a serem encontradas nesta crise.
Peter Xing, autor de obras sobre tecnologias emergentes e diretor associado de iniciativas de tecnologia e crescimento da KPMG acredita que a epidemia do coronavírus está nos abrindo vastas oportunidades de acelerar a automação e a entrega remota de bens e serviços. “O ponto positivo agora é a ampliação da plataforma do ecossistema de transformação digital”, disse.
Em palestra no summit virtual sobre a COVID-19 da Singularity University, na última quinzena, Xing explicou como o surto está acelerando nossa transição para uma sociedade altamente automatizada – e traçou um quadro de como poderá ser esse futuro.
Enfrentando a escassez
A esta altura, você já deve ter encontrado algumas prateleiras vazias em seu supermercado local. Não importa se você estava no corredor de produtos de papel, na seção de alimentos congelados ou na área de frutas e legumes, claramente algo não estava certo; não havia muito disponível. Um dos itens que as pessoas em pânico mais têm comprado em quantidades desproporcionais é o papel higiênico.
Xing descreveu essa busca por papel higiênico como um exemplo do “dilema do prisioneiro” e apontou que o que temos hoje é um problema de escassez em nossa mente, não uma escassez efetiva de suprimentos. “Este é um típico dilema do prisioneiro, pois todos nós estamos prisioneiros em nossas casas nesse momento e podemos estocar produtos ou não; o resultado dependerá de como colaboramos uns com os outros”, afirmou.
Em menção a um artigo da CNN, Xing explica o que torna o papel higiênico um dos itens que pessoas em pânico mais têm comprado: a falta de conhecimento sobre os métodos de produção e a cadeia de suprimentos envolvidos na fabricação do produto. Embora a maioria não faça a menor ideia, a fabricação de papel higiênico é um processo altamente automatizado que requer pouquíssimas pessoas (embora demande cerca de 27.000 árvores por dia).
O fator limitante da cadeia de suprimentos aqui é a matéria-prima; certamente não podemos continuar cortando tantas árvores por dia para sempre. A ironia é que, graças à automação e apesar da quantidade de papel higiênico que os clientes têm enfiado no porta-malas e no banco traseiro de seus carros, o papel higiênico será um dos últimos produtos que as lojas deixarão de receber.
Automação para todos
Embora a atual situação nos obrigue a utilizar robôs e sistemas automatizados antes do que planejávamos, isso acabará nos poupando dinheiro e criando oportunidades, segundo Xing. Ele citou os restaurantes de fast-food mais requintados (conhecidos como “fast casual”) como um excelente exemplo.
Atualmente, os norte-americanos gastam muito mais comendo em casa do que gastariam em restaurantes fast casual – isto se levarmos em conta o custo dos alimentos sendo preparados e o custo da hora despendida cozinhando, fazendo compras no supermercado e limpando a cozinha. Segundo pesquisa da empresa de gestão de investimentos ARK Invest, se todos esses custos forem levados em conta, uma refeição preparada em casa acaba saindo por cerca de US$ 12.
Isso é o mesmo ou mais do que se paga para encomendar um burrito ou um sanduíche na lanchonete da esquina. À medida que tarefas repetitivas e de baixa habilidade envolvidas na preparação de refeições fast casual são automatizadas, seu custo cai ainda mais, dando-nos um incentivo adicional para abandonarmos a comida feita em casa.
Atualmente, não devemos mais tocar outras pessoas, nem em qualquer coisa que outra pessoa tenha tocado, mas ainda precisamos comer. E automatizar a preparação de alimentos soa atraente (e talvez necessário). Inclusive, serviços de entrega de comida já implementaram uma opção de entrega sem contato, na qual os clientes podem optar que a comida seja deixada na porta de casa. Além das oportunidades de automação em restaurantes, existe também uma oportunidade para automatizar o chamado “último quilômetro”, explicou Xing.
Drones de entrega, robôs, caminhões e vans autônomos podem desempenhar um importante papel aqui. E, de fato, a utilização de drones de entrega só aumenta na China desde o surto.
Falando em entregas, o número de robôs de serviço vem crescendo constantemente na Amazon; no final de 2019, a empresa empregava cerca de 650 mil seres humanos e 200 mil robôs – e os custos diminuíam à medida que o número de robôs aumentava.
O estudo da ARK Invest prevê que a automação possa agregar US$ 800 bilhões ao PIB dos Estados Unidos nos próximos 5 anos e US$ 12 trilhões nos próximos 15 anos. Nessa trajetória, o PIB acabará sendo 40% maior com automação do que sem ela.
Automatizando a nós mesmos?
Tudo isso é ótimo; mas o que essas cifras e porcentagens significam para o consumidor, trabalhador ou cidadão médio? “Os benefícios da automação não estão sendo repassados ao cidadão comum”, disse Xing. “Estão indo direto para os acionistas das empresas que criam a automação.” É aqui que entram políticas como renda básica universal e saúde universal; e em um futuro não muito distante, talvez vejamos mais apoio efetivo a tais medidas (dependendo, é claro, do resultado das eleições), que visam disseminar os benefícios da automação em vez de concentrá-los em algumas poucas mãos abastadas.
Enquanto isso, algumas pessoas têm se beneficiado da automação de maneiras inesperadas. Estamos no meio do que talvez seja o maior experimento de trabalho remoto da história – sem levar em conta o ensino remoto. Ferramentas que nos permitem comunicar e colaborar digitalmente – como Slack, Zoom, Dropbox e Gsuite – estão possibilitando o trabalho remoto de maneiras que não seriam possíveis vinte ou mesmo dez anos atrás.
Além disso, segundo Xing, ferramentas como DataRobot e H2O.ai estão democratizando a inteligência artificial, permitindo que praticamente qualquer pessoa (e não apenas cientistas de dados ou engenheiros de computação) execute algoritmos de machine learning. As pessoas estão programando as etapas repetitivas de seus próprios processos de trabalho e fazendo com que seus computadores realizem tarefas no lugar delas.
À medida que a impressão 3D se torna mais econômica e mais acessível, ela também vai sendo mais adotada e as pessoas acabam encontrando novas aplicações para seus recursos (um exemplo pertinente são os italianos mencionados acima que descobriram como imprimir de maneira barata uma válvula médica utilizada no tratamento do coronavírus).
A mãe da invenção
Esse movimento rumo a uma sociedade mais automatizada tem vários pontos positivos, como por exemplo, nos ajudar a permanecer saudáveis em épocas como essa, reduzindo o custo de bens e serviços e fazendo o PIB aumentar no longo prazo. Por outro lado, se recorrermos tanto à automação, será que não estaremos criando um futuro que nos manterá física, psicológica e emocionalmente mais distantes uns dos outros?
Estamos em crise, e tempos extremos exigem medidas extremas. Estamos nos protegendo ficando em casa, praticando o distanciamento social e tentando não nos tocar. Para a maioria de nós, é uma situação bastante desagradável e difícil. Mal podemos esperar que tudo isso acabe.
Bem ou mal, porém, essa pandemia nos acelerará rumo à automação de muitos setores e processos. As soluções que as pessoas implementarem durante essa crise não desaparecerão quando as coisas voltarem ao normal. Contudo, devemos sempre ter uma coisa em mente. Mesmo depois que robôs estiverem preparando nossas refeições e os drones as estiverem entregando, e nossos computadores estiverem digitando dados e respondendo a e-mails em nosso nome, e todos nós tivermos impressoras 3D para fabricar tudo o que quisermos em casa, nós ainda assim continuaremos sendo humanos. E os humanos gostam do convívio humano. Gostamos de ver o rosto dos outros, de ouvir sua voz e de sentir seu toque – em pessoa, não na tela ou via aplicativo.
Nenhuma quantidade de automação mudará isso e, além de reduzir custos ou aumentar o PIB, nossa maior e mais crucial responsabilidade será sempre a de cuidarmos uns dos outros.
Vanessa Bates Ramirez é editora sênior do Singularity Hub. Seus interesses incluem energia renovável, saúde e medicina, desenvolvimento internacional e inúmeros outros tópicos. Quando não está lendo ou escrevendo, podemos geralmente encontrá-la ao ar livre, na água ou em um avião.